Comunidade Tradicional Paulo Leal: gerações que resistem à secular exploração da Amazônia

No dia da "Justiça Social", o artigo de Solange Struwka e Geraldo Lima traz informações e relatos importantes da comunidade tradicional Paulo Leal, como sua constituição a partir da ferrovia Madeira-Mamoré, a mudança de nome da comunidade que ocorreu em 1958, no período final do segundo ciclo da borracha, até os desafios enfrentados atualmente.

Casas da vila
Casas da vila

A vinte e três quilômetros da capital do estado de Rondônia, na estrada em direção à Vila Nova Teotônio, está localizada a comunidade tradicional Paulo Leal. Ao chegar no povoado, já à primeira vista, o território anuncia que ali resiste parte significativa da história da região. Do lado esquerdo da estrada a capela dá indícios da longa data de ocupação do território. Do outro lado encontra-se um cemitério. Em conversa com os moradores compreendemos que ele é um anexo do antigo, aquele que acolheu os corpos cansados dos trabalhadores ferroviários, em sua maioria negros, e de seus familiares. A estrada em que pisávamos havia sido desviada, cortando-o ao meio. A parte restante deste espaço sagrado, fora violado pelo fazendeiro pecuarista das terras ao lado. Há dois anos, sem escrúpulos ou qualquer respeito, o sujeito passou a grade por cima do local, violando a história da região e a memória dos entes queridos do povoado. Mais uma das expressões de como esta Comunidade vem sendo tratada nas últimas décadas. 

Entrada da comunidade
Entrada da comunidade

Alguns passos adiante nos deparamos com um complexo centenário que envolve os trilhos dos trens, locomotivas, as seis casas enfileiradas, construídas num mesmo padrão arquitetônico, uma imponente caixa d'água que abastecia as marias-fumaças e vestígios das linhas telegráficas da Comissão de Rondon. Entremeio ao que era a “mais avançada” produção tecnológica humana da lógica capitalista atuou a força da natureza. A floresta que fora rasgada para dar passagem aos trilhos, hoje se entrelaça entre a maquinaria. A frondosa mangueira nascida entre os vagões indica as décadas sem atividade da ferrovia. Este poderia ser um genuíno exemplo da distopia amazônica do início do século passado. Trilhos e vagões, linhas telegráficas e outras ferragens que se entrelaçam com a floresta e brincam de camuflar os vestígios desta longa história. Na memória dos antigos moradores da vila ainda ecoa o som do apito que anunciava a parada do trem, carregado de passageiros e mercadorias, o vai e vem dos trabalhadores que garantiam o abastecimento de lenha e água e o intenso movimento de trocas na comunidade.

Trilho e locomotiva da antiga EFMM
Trilho e locomotiva da antiga EFMM

O cenário é um relevante registro histórico - “a céu aberto” - de Porto Velho e dos diferentes momentos da ocupação da região Amazônica. Ali se impôs a implementação das mais importantes tecnologias urbanas do início do século passado – a rede ferroviária a vapor que ligava Brasil e Bolívia, finalizada em 1907, e as linhas telegráficas que buscavam conectar do Rio de Janeiro ao Amazonas (1906-1909). Também nos indica o descaso dos órgãos públicos com a memória do povo trabalhador do estado; os incontáveis que deram suas vidas para garantir que os 615 mil dormentes montassem os 366 quilômetros da rede ferroviária. Memórias dos outros tantos que trabalharam, ano após ano, para que toda esta infraestrutura funcionasse. Ademais, evidencia que são os esforços da comunidade que ainda mantém o local conservado e a história viva. Esta adverte aos apressados ou ignorantes sobre a importância do território: “Bem vindos à Comunidade Paulo Leal – desde 1958 – aqui tem história”, lemos na inscrição da placa.

Igreja da comunidade
Igreja da comunidade

          Apesar da inscrição remeter a 1958, o início da comunidade é cinquenta anos antes, em 1907, com o início das atividades da Ferrovia Madeira-Mamoré. O período foi marcado pelo fim da guerra entre Brasil e Bolívia e a assinatura do tratado de Petrópolis, que acordou a construção desta linha de conexão da Bolívia ao oceano Atlântico em troca da anexação do Acre pelo governo brasileiro. A economia da região era então movimentada pelo primeiro ciclo da borracha e o trabalho de servidão nos seringais. Esse período foi de intenso fluxo de migrantes de dentro e fora do país.  

Dona Maria e seu Geraldo, moradores da comunidade e descendentes de trabalhadores da seringa e da estrada de ferro, explicam que a cada 25 quilômetros a Maria-Fumaça precisava parar para ser resfriada com água. Ali, se encontrava a primeira parada após a saída de Porto Velho, com destino a Guajará-Mirim, fronteira com a Bolívia. À época, a estação era chamada de Teotônio, devido a cachoeira que ficava à 9km dali. Este período da história ainda é relembrado à medida que algumas pessoas identificam esta comunidade como “KM 25”, fazendo referência a quilometragem dos trilhos. De acordo com os autos do laudo pericial 166/2023 realizado pelo Ministério Público Federal sobre a Comunidade, a presença das famílias na localidade remete, a pelo menos, cem anos e oito gerações. 

Imagem do Laudo Laudo Pericial 166/2023, p. 37
Imagem do Laudo Laudo Pericial 166/2023, p. 37

 Os moradores narram que a mudança de nome da comunidade ocorreu na década de 1958, período do segundo ciclo da borracha e da retomada das atividades da Estação Ferroviária Madeira-Mamoré. Este período foi caracterizado pela implantação das políticas governamentais voltadas às colônias agrícolas e fim do segundo ciclo da borracha. Seu Geraldo explica com entusiasmo que as colônias agrícolas foram pensadas para viabilizar a produção de alimentos por aqueles que já formavam as comunidades ao longo da ferrovia. Nesta localidade foi criado o lote 5 na gleba C, onde os moradores da comunidade vivem, e os lote 4 e 7 na gleba D, que também integram parte do complexo centenário. Contudo, o projeto não foi efetivado como prometido, impossibilitando a posse e a titulação dos lotes para os referidos moradores. Geraldo acrescenta, com pesar, que nas décadas seguintes os lotes 4 e 7 - que eram da União - foram doados para terceiros, sem nenhuma vinculação com o território. Eram os desdobramentos do Projeto de Colonização Alto Madeira, uma das políticas dos anos de chumbo impostos pela ditadura empresarial-militar. Vale destacar que esse período também foi marcado por intenso movimentos migratórios, com um grande contingente de pessoas vindas do nordeste e do sul do Brasil, induzidas pelo chamado do governo. O lema da época era: “terras sem homens para homens sem terra”. A trágica ironia é que aqueles que ali viviam não foram reconhecidos como dignos da posse do território que manejavam. 

Seu Geraldo e dona Maria apontam que são da quarta geração de pessoas libertas após a escravidão. Na Amazônia, seus antepassados estiveram sob a imposição da servidão do trabalho debaixo das grandes plantações de seringa. A família mudou-se para a comunidade quando era ainda crianças, ele com apenas um ano. Acompanharam as várias transformações no território e hoje lutam para que o trabalho, a história e a memória dos seus não seja apagada. Reivindicam que as famílias que ali residem não continuem sendo expropriadas e que ocorra o reconhecimento da preservação daqueles bens tão importantes para a região. A necessidade desse reconhecimento foi comprovada pelo já citado laudo, realizado pelo Ministério Público Federal. Ao considerar a riqueza histórica e geográfica do território, o estudo antropológico ratifica a necessidade do reconhecimento desta como Comunidade Tradicional.

Cemitério da comunidade
Cemitério da comunidade

 Durante o acompanhamento do cotidiano da comunidade, foi possível identificar alguns conflitos e enfrentamentos que os moradores vêm travando nas últimas décadas. Um dos mais marcantes da década passado foi, sem dúvida a construção da barragem da Usina Hidrelétrica Santo Antônio. Depois da finalização das atividades na estrada de ferro, às famílias da comunidade Paulo Leal passaram a ter como principal atividade a produção de alimentos em pequenas áreas próximas as residências, a pesca artesanal na cachoeira Teotônio e a comercialização de alimentos para visitantes da cachoeira. Estas duas últimas atividades econômicas foram totalmente destruídas a partir do alagamento da cachoeira e a inundação das áreas próximas, decretando o fim deste importante ponto turístico. Essas mudanças geradas pelo empreendimento fizeram com que o rio não tenha mais peixes e que a comunidade não receba mais visitantes. 

         Além disso, devido a formação do lago ocorreu a desterritorialização dos moradores da Vila Teotonio que passou a ficar mais distante, impedindo o acesso a pé ou de bicicleta, como era feito antes. Os moradores também perderam a escola da comunidade que fora fechada em 2012.  O intenso fluxo de pessoas e transporte público também cessou, assim como aumentou a distância geográfica entre as comunidades. Depois da construção da barragem e implementação da Nova Vila de Teotônio, realizada pelo empreendimento, a histórica Escola Visconde de Mauá da comunidade Paulo Leal foi fechada. A revelia dos interesses das famílias, as crianças tem ido à escola Augusto Vasconcelos, localizada na Nova Vila Teotônio. 

 Outra importante mudança foi a intensa proliferação de mosquitos e mutucas no território. Os relatos apontam a necessidade de “se fechar em casa” para não ser picado pelos insetos, que resulta em alergias, interfere no desenvolvimento dos trabalhos e na sociabilidade dos moradores. Apesar dos impactos, e a despeito de estar localizada a 3 quilômetros do primeiro ponto de alagado produzido pela construção da barragem, os moradores da comunidade Paulo Leal não foram reconhecidos pela empresa como atingidos, impedindo o recebimento de qualquer tipo de reparação das perdas sofridas. 

 Somados a isso, os moradores vêm sendo “asfixiados” pelos fazendeiros que plantam soja nas áreas ao redor da comunidade. As estratégias utilizadas pelos fazendeiros são diversas: invasão das áreas coletivas da comunidade, destruição dos espaços sagrados, como o cemitério, represamento da água que circulava pelo igarapé, despejo de agrotóxicos na comunidade. Os relatos apresentam um cenário de recorrentes violações de direitos, que causam a descaracterização de lugares históricos, a perda de trabalho e renda, o adoecimento e a saída forçada dos moradores da comunidade, a morte de animais e das plantas, dentre outros. O que acompanhamos, mais uma vez, é a imposição dos projetos colonizadores da região, agora expressos nos grandes empreendimentos hidrelétricos e nos latifúndios que utilizam de alta tecnologia para produção da soja. Novamente se utiliza a ideologia do “desenvolvimento” e do “progresso” para expulsar as famílias dos territórios que dão lugar aos desertos da soja, produzida para alimentar os lucros de quem nem aqui vive. 

 

Autores do texto: 

Solange Struwka – Docente do curso de graduação e pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Rondônia. Coordenadora do projeto de extensão “Registrar a Memória de quem faz a história: práxis da Psicologia Social junto a Comunidades, Povos e Coletivos da Amazônia” (@REMO).

Geraldo Lima – Liderança da comunidade Paulo Leal, filho dos primeiros moradores da comunidade e um dos guardiões da memória e história do território. 

 

Imagens:

Fabiany Araújo @fab1any

 

Informações:

As informações do texto foram sistematizadas a partir das atividades coletivas e entrevistas realizadas pelo projeto de extensão “Registrar a Memória de quem faz a história: práxis da Psicologia Social junto a Comunidades, Povos e Coletivos da Amazônia”, DEPSI/UNIR. 

 

Referência:

CAMPOS F. A. A, Rebeca. Laudo Pericial 166/2023. Ministério Público Federal, Brasília-DF, 2022. 

Imprimir